Superman não vai salvar a DC, ele vai salvar o fã
- 26/12/2024
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Engolida pelo cinismo, parte do público se vê dependente de um retrato apocalíptico da realidade - e talvez o único herói que possa trazer luz à essa discussão é o homem de aço.
Nos anos 2000, o retrato realista do herói se tornou regra de sucesso. Fracassos como Lanterna Verde, Demolidor e Superman de Bryan Singer, deram a certeza aos estúdios que apostar no realista e sombrio era a saída. X-Men e Batman foram os primeiros a puxar o bonde, enquanto Homem-Aranha de Sam Raimi nadava na direção contrária com suas cores e exagero estético - fato é que não durou muito, apesar do apreço do público. Até o herói da Marvel ganhou sua versão “realista” com O Espetacular Homem-Aranha, de Marc Webb. Os anos 2000 e 2010 foram o ápice do realismo heroico nos cinemas.
O Marvel Studios achou o meio termo entre a fantasia e a realidade, tal qual Thor mistura ciência e magia. Os trajes táticos se misturavam a pequenas referências dos quadrinhos, enquanto máscaras, poderes e até origens eram completamente descartadas em prol do universo conectado. Com o MCU, não só o cinema viu a era de ouro dos heróis, como uma nova faceta das HQs no audiovisual. Ainda assim, o realismo não saiu de moda, afinal, sempre foi a aposta da DC e da Warner para as adaptações cinematográficas que saíram da mente de Zack Snyder e Cia. Por mais que James Wan tentasse levar o Aquaman para um mundo mais lúdico, a Liga nunca deixava que o tom de Snyder se perdesse.
E uma década se foi, com a DC envolta em mais polêmicas que êxitos, o que calhou em uma tenebrosa fase de bilheterias e audiência. Se com Snyder o desempenho era duvidoso, sem ele se tornou insustentável. Adão Negro, Aves de Rapina, Flash, Besouro Azul e Shazam foram a pá de cal que faltava para a ideia do DCEU terminar, ninguém aceitava mais aquela leitura do gênero e alguns diziam até que a audiência sequer aceitaria mais heróis no geral, já que os filmes da Marvel, antes sucessos absolutos, começaram também a cair em popularidade.
Independente do que virá a ser do gênero de heróis no cinema em 2025, uma coisa está evidente: a audiência não quer ver continuidade no que estava sendo proposto. Seja no Multiverso da Marvel, seja na DC sombria de Coringa ou Adão Negro. A nostalgia recente daqueles que viram a Saga do Infinito e o Snydercut fala alto a ponto de vermos um frisson sem tamanho para o retorno desesperado de Robert Downey Jr. como Doutor Destino, ou mesmo as infundadas críticas às cores de frames de um teaser do teaser do teaser do Superman de James Gunn.
Nesta semana, depois de muita expectativa, o diretor revelou as primeiras imagens e o primeiro vídeo do filme. Com uma clara intenção de se distanciar de quase tudo que Snyder realizou, Gunn revelou um herói com trajes clássicos, tons vivos e uma ambientação tão rebuscada quanto qualquer fantasia apresentada por Tolkien ou JK Rowling. O Superman de Gunn tem cachorros superpoderosos, kaijus na cidade, alienígenas vivendo há anos entre humanos, vilões maquiavélicos, Mulheres gaviões e cuecas por cima das calças. O filme quer ser uma fantasia digna das páginas dos quadrinhos eternizados por Grant Morrison em Grandes Astros ou Mark Waid em Reino do Amanhã.
Mas antes disso, o herói de Gunn, como ele mesmo descreve, parece ser sobre “a bondade inerente e básica” dos seres humanos. E num mundo tão dividido como o nosso, que não consegue discutir sobre feijão embaixo ou em cima do arroz sem criar uma conexão com princípios de humanidade, será mesmo que há espaço para um herói tão… básico? A resposta da internet deixa claro que sim. O sucesso de audiência do trailer foi tão grande quanto de The Batman, maior filme da DC desde Coringa; e a discussão em torno do tom do filme foi tão intensa quanto os debates da época MCU vs DCEU.
Grande parte da discussão circula o fato do filme ser colorido, ter figurinos retrô, monstros e alienígenas sem grande tom de ameaça e, no fim, por não parecer… real. A questão parece muito mais estar no que a audiência se acostumou para o gênero, com o que de fato tem qualidade ou não - levando em consideração as primeiras imagens, claro. Se os trajes não forem musculosos, tecnológicos, feitos para o combate e conectados com algum propósito detalhadamente descrito para justificar a quantidade de poros, símbolos e texturas, esquece. “Não faz sentido”. Há uma clara expectativa de que tudo que seja “cinematográfico” venha com o selo de realismo grandioso embutido, independente da história. Não a toa a Marvel voltou atrás com Capitão América 4 e Thunderbolts, optando por filmes mais “pé no chão” do que qualquer outro que havia planejado (o Quarteto é papo para outro texto).
O cinismo arraigado em parte da audiência que foi educada com heróis de caráter dúbio e teoricamente “humanos”, se tornou um padrão que vai além das histórias e passa para a estética. Se há luz há esperança, se há esperança há bondade, e o ser humano não é bom. Porquê então assistir a algo que não se conecta comigo? Que não me representa ou reflete a minha realidade? Se você não é do meu time, eu não vou estar do seu lado. É claro que há um exagero da minha parte nessas expressões, mas vale a hipérbole para desenhar quao pessimista e sem qualquer capacidade de imaginação (que não seja apocalíptica) grande parte do público se tornou.
E quando menciono publico me refiro mais a uma parte dos fãs do gênero, não da massa que vai ao cinema. Afinal, filmes “solares” como Barbie, Top Gun: Maverick, Divertida Mente 2, Avatar 2, Wicked e Moana 2 seguem como grandes sucessos. O fã de quadrinhos, o nerd de carteirinha, ou uma parcela dele, é que passa por um momento conturbado de identidade, onde viu seus bonecos se tornarem símbolo de cultura de massa, deixarem de ser especiais, e viram no niilismo de certas versões deles a justificativa para se diferenciar dos novos fãs. É como se falasse “eu gosto da versão mais adulta”, pois heróis adultos são o que me atendem agora - quando na verdade, não existe idade para heróis como Aranha, Batman ou Superman.
E mesmo que não tenha nenhuma intenção em fazer isso, o Superman pode acabar sendo a salvação que essa galera precisava, mas que se negue a aceitar. Nenhum herói talvez seja tão universal quanto o Superman, por mais distante e poderoso que ele seja, e por um motivo simples: ele acredita na bondade das pessoas. Entre recaídas e dilemas, ele segue como o farol de esperança não só para os oprimidos, mas até para os opressores, que mesmo no pior dos momentos não deixam de ser humanos, afinal, não há nada simples em ser humano - e Clark/Superman entende isso como ninguém. E nem sempre é sobre “achar o equilíbrio” ou “não ter um lado”, é só sobre saber conviver e se respeitar, fatos cada vez mais difíceis na época em que vivemos.
James Gunn disse que o filme, que estreia em julho, vai refletir muito sobre a “divisão” que assola nossa sociedade. A figura do Superman caído no começo do trailer seria a esperança, a humanidade fragilizada pela batalha que trava com vozes cada vez mais violentas, em busca de uma repressão ao que é humano. O resgate de Krypto não vem também por acaso. O melhor amigo do homem chega para levar o herói para casa como um símbolo de socorro, mas com a ternura que só um cachorrinho conseguiria o fazer. E talvez seja esse o papel do Superman de David Corenswet, no fim das contas, ser o amigo que falta a uma grande parte do público que desaprendeu a olhar com esperança para as coisas. Com menos cálculos e mais coração, com menos desconfiança e mais fé, com menos pessimismo e, sim, mais amor. Quem sabe o Superman de Gunn esteja nascendo não para salvar a DC, mas sim o fã como um todo.